Por Ana Luiza Albuquerque
Levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro indica que a média do tempo de reclusão foi de um ano e dois meses
Mais de 80% dos réus absolvidos de acusações feitas com base no reconhecimento fotográfico chegaram a ser presos no curso do processo judicial. Em média, a detenção durou um ano e dois meses –há casos de pessoas que ficaram presas por quase seis anos.
Os números fazem parte de novo relatório da DPRJ (Defensoria Pública do Rio de Janeiro) divulgado nesta quinta-feira (5) e produzido com base em processos do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro). Os dados alertam para os riscos da utilização do reconhecimento por foto como a única prova para ligar um suspeito a um crime.
Apesar de não haver previsão legal, o reconhecimento fotográfico é frequentemente adotado nas delegacias, onde são produzidos álbuns com fotos de pessoas consideradas suspeitas. O procedimento também ocorre a partir de fotos nas redes sociais.
Na produção dos relatórios anteriores, o órgão dependia do fornecimento de informações pelos defensores. Desta vez, a busca ativa aumentou o escopo dos casos estudados.
Ao todo, 242 processos foram analisados. Entre os 342 réus, 64% são negros e 96% são homens. Quase 80% das ocorrências foram de roubo.
Em fevereiro de 2022, 256 entre os réus já haviam sido sentenciados –75% foram condenados e 25% foram absolvidos. Entre as 65 pessoas absolvidas, 54 foram presas provisoriamente em algum momento do processo.
“Embora tenha havido uma guinada na jurisprudência do STJ, recomendando que sejam observadas as formalidades da lei processual penal, chama a atenção que continuemos falando sobre reconhecimento fotográfico a partir de fotos colhidas de redes sociais e álbum de suspeitos”, afirma a defensora Lucia Helena Oliveira, coordenadora de Defesa Criminal da DPRJ.
Os motivos mais citados pelos magistrados para absolver os réus foram a inconsistência, insuficiência ou fragilidade dos elementos probatórios e o reconhecimento em juízo negativo. Segundo o relatório da Defensoria, em 30% dos casos a vítima não confirmou em juízo o reconhecimento feito para a polícia.
“Esse percentual alto mostra o quão falho é o reconhecimento feito na delegacia. Se a vítima não confirmou o procedimento, um equívoco aconteceu para que ela não tenha identificado. A memória pode afetar o reconhecimento, há um índice de erro muito grande”, diz Oliveira.
A defensora também alerta para a maioria de negros entre os réus acusados por meio da ferramenta. “A gente identifica esse viés racial, não só nesse tema do reconhecimento fotográfico, mas também quando analisamos o perfil dos réus ingressando no sistema prisional. Precisamos mudar esse percentual, não se pode falar num álbum de suspeitos com uma grande maioria de fotos de pessoas negras.”
Em janeiro deste ano, o TJ-RJ expediu uma recomendação para que os juízes reavaliassem as prisões preventivas decretadas somente com base no reconhecimento fotográfico.
Ao mesmo tempo, a Defensoria criou o Observatório do Reconhecimento Fotográfico para monitorar o cumprimento da recomendação. O grupo pediu que todos os defensores criminais compartilhassem as decisões judiciais referentes à prisão preventiva em casos de reconhecimento fotográfico para a produção de estatísticas e desenvolvimento de atuações estratégicas sobre o tema.
A medida do Tribunal de Justiça veio na esteira do entendimento do STJ de que o reconhecimento de um suspeito, presencialmente ou por fotografia, na fase do inquérito policial, apenas é válido quando corroborado por outras provas colhidas na fase judicial e quando respeitado o Código de Processo Penal —o artigo 226 fixa alguns requisitos para o reconhecimento de pessoas.
No dia 27 de outubro de 2020, a corte absolveu por unanimidade um homem condenado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina a mais de cinco anos de prisão com base apenas em identificação fotográfica.
Em agosto do ano passado, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) criou um grupo de trabalho para realizar estudos e elaborar uma proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento de pessoas em processos criminais, com o objetivo de evitar a condenação de inocentes.
Especialistas e instituições criticam o uso de foto para reconhecimento de suspeitos, diante da alta chance de erro. A psicologia do testemunho, área de estudo do direito, indica que esse tipo de prova é frágil devido às “falsas memórias”, comuns distorções nas lembranças que ocorrem especialmente em situações e ambientes sugestivos, como uma delegacia ou um fórum.
Doutor em ciências criminais pela PUC-RS e autor do livro “Falsas Memórias e Sistema Penal: A prova testemunhal em xeque”, o pesquisador Gustavo Noronha de Ávila lembra que nos Estados Unidos 70% das condenações de inocentes partiram de identificação mal feita, pessoal ou fotográfica.
No Brasil não existe um levantamento da mesma extensão, mas Ávila acredita que milhares de inocentes passem pela mesma situação no país.
Em 2015, o professor produziu um relatório a pedido do Ministério da Justiça, que tinha como objetivo identificar de que forma a prova penal dependente da memória era produzida no país. Foram entrevistadas 87 pessoas, entre elas policiais, defensores públicos, advogados, membros do Ministério Público e da magistratura.
Ávila afirma que pelo levantamento foi possível concluir que a prova produzida no Brasil é de má qualidade, em desacordo com as boas práticas previstas pela psicologia do testemunho. Segundo ele, o reconhecimento fotográfico é o procedimento mais sugestionável e frágil de todos.
“[Nas entrevistas ouvimos] coisas que nos deixaram muito preocupados. Uma pessoa disse que julgava com os olhos da alma, outra que sabia quando a testemunha mentia e quando falava a verdade. Uma pessoa acometida de falsa memória tem a mesma atitude de quem está falando a verdade. Precisamos de corroboração imparcial, de outra fonte de prova”, afirma.
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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