Por Marcelo Semer
Controle exclusivo da pauta com o presidente do STF é enclave autoritário
Em 22 de janeiro de 2020, o ministro Luiz Fux concedeu liminar ao pedido de associações nacionais de magistrados para a suspensão do dispositivo que criava a figura do juiz das garantias. A liminar monocrática foi dada “ad referendum” do plenário. Dois anos depois, sem referendo do plenário, o último andamento no site do Supremo Tribunal Federal informa que o processo foi excluído do calendário de julgamento pelo presidente —o próprio ministro Fux. Não consta, ademais, dos temas que devem ser submetidos ao plenário no primeiro semestre deste ano.
Cabe lembrar que a sanção da lei anticrime, com o juiz das garantias incluído, representou o primeiro forte embate entre o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, que exigia o veto, e o presidente Jair Bolsonaro (PL), que o recusou. O texto havia sido aprovado em consenso nas duas Casas legislativas. Nesse meio-tempo, dois ministros da chamada ala garantista do Supremo (o que no processo penal significa dizer legalista) já se aposentaram.
Escolher o momento de julgar uma causa é tão importante quanto o mérito da decisão —soubemos disso, aliás, com o timing do afastamento do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB), a quem foram atribuídos fatos gravíssimos na condução da Câmara, apenas apreciados, todavia, após ter encerrado a sua participação no processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Em 29 de dezembro último, esta Folha lembrou que o próprio Fux teria adiado mais uma vez o julgamento de ação contra lei do Rio de Janeiro que beneficiaria os magistrados do estado. O STF iniciou o julgamento da lei em 2012, com o voto do então ministro Ayres Britto pela derrubada da norma. Fux pediu vista e só liberou o caso cinco anos depois, em 2017. Em 2019, assumiu a presidência da corte e nunca levou o processo para análise do plenário.
O controle da pauta exclusivamente pelo presidente é outro mecanismo individual de poder que tem resistido ao tempo —e às mudanças na chefia do tribunal, a propósito.
Reduzir tais enclaves autoritários, porque submetidos ao desígnio de uma só pessoa, seria um acréscimo significativo à credibilidade do Judiciário. Deixariam de pairar suspeitas (muitas vezes levianas, é bom que se diga) sobre as condutas dos ministros. De outro lado, impedir decisões monocráticas, como já se pretendeu fazer, atentaria contra o princípio da inafastabilidade da jurisdição —pois nem sempre é possível reunir turma ou plenário para decisões urgentes, e nenhuma lesão ou ameaça à lesão de direito pode ficar sem apreciação. É preciso encontrar um meio-termo que valorize a decisão judicial, sem que ela se subordine ao interesse de apenas um.
Em liminares “ad referendum”, como nas de ações de inconstitucionalidade, a questão é simples: basta fixar como regra que, uma vez concedidas, sejam levados os processos às respectivas turmas julgadoras na primeira oportunidade. Assim se preservam tanto a urgência quanto o predicado do juiz natural.
As vistas, por sua vez, devem ser limitadas; o Código de Processo Civil, de alteração recente, estabeleceu prazo a quem pede vista (dez dias, prorrogáveis por outros dez, art. 940). Findo o prazo, a colocação em pauta deve ser determinada pelo presidente da Turma para evitar que um julgador possa interromper o julgamento a seu talante, pelo tempo que quiser. O regimento do STF também fixa prazo para vistas, mas sem qualquer sanção (o ex-presidente Maurício Correa tentou estabelecer medidas de constrangimento que, todavia, não vingaram).
Também o controle da pauta não pode ficar nas mãos de uma só pessoa —colocar um processo em julgamento ou não é tão relevante como prover ou negar um recurso. Se existem razões para que a ordem cronológica seja invertida —e, muitas vezes, de fato existem—, quem deve decidi-lo é seu juiz natural (a turma ou o plenário, no caso do STF), não um presidente de forma discricionária e desmotivada.
O princípio do juiz natural é a salvaguarda a escolhas tendenciosas ou usurpação de poderes ao julgar. É o que nos protege da parcialidade e do autoritarismo.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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