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A garantia da imparcialidade como direito fundamental

A garantia da imparcialidade como direito fundamental

Desafio continua sendo desconstruir o mito moderno de que o juiz busca a verdade real

Desde a suspeição do ex-juiz Sergio Moro, declarada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) , abriu-se um novo modo de olhar o devido processo legal no Brasil. Até então, havia um apego aos poderes instrutórios – quase absolutos – do juiz. Para um tribunal reconhecer a suspeição de um magistrado, era necessário provar que o juiz era inimigo capital do réu, o que tornava essa prova uma espécie de “neo-ordália” – uma prova demoníaca.

Sergio Moro tanto foi ao moinho que, como se diz no folclore, perdeu o focinho. Por sete motivos, o Supremo o declarou parcial. Portanto, elementos objetivos passam, agora, a poderem ser levantados pelas partes para demostrar a falta de imparcialidade. Do império da subjetividade chegamos à possibilidade da objetividade.

Recentemente, em ações criminais contra o ex-deputado Edson Giroto, de Mato Grosso do Sul, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) declarou suspeito o juiz federal de primeira instância, por ter efetuado cerca de 40 perguntas a uma testemunha, “num nível de detalhamento extremamente grande, sobre questões técnicas relacionadas às obras”. Ou seja: o tribunal reconheceu a suspeição do juiz porque ele assumiu postura manifestamente inquisitorial durante a instrução do processo. Isso viola o sistema acusatório e denota a suspeição.

O juiz não obedeceu ao disposto no artigo 212 do CPP e, ao usurpar o papel destinado ao Ministério Público, saiu à busca de provas em desfavor do réu. Com isso, extrapolou sua função e demonstrou sua parcialidade. O juiz não pode tudo, nem mesmo para “combater a corrupção” – que tampouco é sua tarefa! Portanto, correta a decisão do TRF3 que, aliás, encontra suporte em precedente do Supremo no qual se discutiu precisamente a impossibilidade de o juiz “questionar detalhadamente a testemunha de acusação” (HC 202.557).

Com a reforma processual de 2008, que modificou a redação do artigo 212 do CPP, a inquirição das testemunhas cabe à acusação e à defesa, restando ao juiz perguntas complementares sobre pontos não esclarecidos. Isso significa dizer que a alteração do Código veio para compatibilizá-lo com a Constituição de 1988, que fez uma opção inequívoca pelo sistema acusatório. Ainda em 2009, logo após a mudança da lei, fomos os primeiros a alertar para isso, provocando a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), que acolheu a tese da nulidade absoluta dos processos que violavam o artigo 212 do CPP.

O grande desafio continua sendo desconstruir o mito moderno de que o juiz busca a verdade real. Esse é um argumento (filosoficamente superado) que apenas revela o grau de inquisitorialismo presente no Direito. De há muito, já sabemos que a verdade real não ultrapassa o plano da ficção. Ela é uma verdade inalcançável, ontológica, essencialista.

Ocorre que os fatos residem no passado e só podem ser reconstruídos por meio de narrativas, de tal maneira que a cognição proporcionada pelo processo limita-se a uma verdade formal. Incumbe às partes, e não ao juiz, o dever de produzirem as provas dos fatos que pretendem demonstrar. O problema epistemológico (como se conhece) independe da natureza jurisdicional, civil ou penal. Além disso: se o juiz presenciasse os fatos e se isso significasse acessar a verdade – ainda que toda filosofia pudesse duvidar –, ele estaria impedido de julgar o caso, porque a lei assim determina.

Enfim, demorou bastante tempo, porém surgem sinais de que o sistema acusatório finalmente chegou. Esperamos que para ficar, pois estamos tratando do respeito a um direito fundamental de todo cidadão: um julgador imparcial, um acusador independente e um defensor efetivo. São esses os requisitos imprescindíveis para um processo penal democrático. By the way, é o modelo adotado pelo constituinte, desde 1988.

Artigo publicado originalmente no Jota.

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