Por Domingos Barroso da Costa, Rafael Raphaelli, Fernando Antônio Calmon Reis, Pedro Carriello, Flavio Aurelio Wandeck Filho e Rafael Ramia Munerati
Está pautado para esta quinta-feira (10/02) o julgamento do ARE 1.225.185 – com repercussão geral reconhecida –, em que se debate e se decidirá acerca da possibilidade de recurso acusatório diante de absolvição pela resposta afirmativa ao quesito absolutório genérico pelo Tribunal do Júri sob a alegação de manifesta contrariedade à prova dos autos (CPP, art. 593, III, “d”). A análise jurídica da questão dá-se nas franjas da Ciência Política, na medida em que se trata, especialmente, de interpretar e afirmar os limites dados pelo direito pátrio à expressão do poder soberano que, segundo nossa Constituição, emana do povo (CF, art. 1º, parágrafo único).
Não se tratando de uma ciência dura, cujas verdades são demonstráveis por números ou empiricamente, a verdade que se busca no Direito deve tributo à coerência, ao princípio lógico da não contradição em que deve se estruturar o ordenamento jurídico, segundo conhecidas lições de Bobbio, especialmente em seu Teoria do ordenamento jurídico[i].
Partindo desse pressuposto, portanto, necessário que analisemos os textos legais em seu contexto constitucional.
Nesse sentido, cumpre relembrar que, até prova em contrário, seguimos sob a égide de uma Constituição que funda e estrutura um Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, caput), a qual, em relação ao poder, dele extrai sua legitimidade ao mesmo tempo em que estabelece diretrizes normativas à sua expressão ao reconhecer que emana do povo, que o exerce direta ou indiretamente por meio de representantes eleitos (CF, art. 1º, parágrafo único).
Já temos, então, uma primeira premissa da qual partir para bem analisar a questão posta. Na medida em que proferidos por integrantes do povo que o representam na unidade do conceito, temos que os veredictos do Tribunal do Júri são expressão maior e direta desse “todo poder” que consubstancia a Constituição, ao qual ela está, portanto, subordinada nos limites por ela própria estabelecidos. É nesse contexto que a Constituição assegura a soberania dos veredictos do júri e o sigilo das votações que o sustentam[ii] (CF, art. 5º, XXXVIII, “b” e “c”).
E, neste momento, oportuno destacar que o Tribunal do Júri nos coloca diante de uma situação em que soberanos – cidadãos, integrantes do povo –, investidos pela Constituição de um máximo poder que, na hipótese, é exercido diretamente e em sua expressão mais radical – o poder de punir –, têm o dever de julgar um dos seus – também soberano, portanto – a quem se imputa a prática de crime(s) doloso(s) contra a vida. É justamente em razão da soberania compartilhada entre julgadores e julgados que, àqueles levados à barra do Tribunal do Júri, não é assegurada simplesmente a ampla defesa prevista para os acusados em geral (CF, art. 5º, LV), mas a plenitude de defesa (CF, art. 5º, XXXVIII, “a”), um a mais de proteção que tem por finalidade assegurar a paridade de poderes entre os soberanos que julgam e os soberanos julgados.
Note-se, a propósito, que a plenitude de defesa encabeça as garantias associadas ao júri, antecedendo o sigilo das votações (‘b”), a própria soberania dos veredictos (“c”) e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (“d”). Tal primazia topológica é dotada de sentidos na medida em que se mostra coerente com todo o sistema de garantias penais e processuais penais estabelecido pela Constituição, que faz da liberdade a regra e de sua privação, a exceção, sendo presumida a inocência do cidadão que se veja colocado na condição de acusado diante do sistema de justiça penal (CF, art. 5º, LVII), nem mesmo sua confissão sendo suficiente, por si só, a livrar o acusador do ônus de comprovar a culpa imputada (CPP, art. 197).
Aliás, a preocupação de nosso sistema jurídico com a proteção à liberdade bem se expressa pela vinculação primeira do Ministério Público, titular da ação penal pública, com “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (CF, art. 127), o que faz a instituição – ou deveria fazê-la – essencialmente comprometida com a preservação das garantias constitucionais e com a imparcialidade que o exercício dessa função protetiva requer, desobrigada, então, da busca parcial pelo êxito a qualquer custo da pretensão acusatória deduzida em juízo.
Retornando às peculiaridades do júri, pontuamos que a plenitude de defesa – essa garantia que vai além da ampla defesa – assegurada ao membro do povo soberano colocado na posição de acusado justifica-se precisamente por ser esta a forma de exposição mais nua à soberania em sua expressão mais radical, qual seja, o poder de punir, que, no caso, é eventualmente autorizado por meio de um veredicto condenatório proferido por representantes do povo, leigos e descompromissados em relação aos deveres de motivação e rigor técnico que vinculam as funções do sistema de justiça em proteção aos acusados em geral (CF, art. 5º, art. 93, IX).
Feitas essas considerações introdutórias, que reputamos capazes de bem situar o Tribunal do Júri como garantia em que a liberdade do julgado goza de especial proteção em face do poder de decisão exercido direta e soberanamente por seus pares leigos – em coerência com o que o sistema de garantias fundamentais assegura para os acusados em geral submetidos a julgamento técnico –, cumpre-nos tratar do modo como se constrói o veredicto do júri, analisando-o, certamente, dentro desse mesmo sistema de garantias de que cuidamos até aqui.
Posto isso, refletindo a soberania que expressam, tem-se que a legitimação dos veredictos do júri não depende de uma fundamentação (motivação) que vincule as conclusões alcançadas às provas produzidas e ao que estabelecem as normas penais e processuais penais, estando os jurados comprometidos, em nome da lei, a examinar a causa que lhes for submetida com imparcialidade e proferir sua decisão de acordo com sua consciência e os ditames da justiça (CPP, art. 472).
Assim, comprometidos “com sua consciência e os ditames da justiça”, os jurados construirão seu veredicto a partir da resposta a quesitos bastante simplificados desde a reforma processual procedida em 2008, com o nítido intuito de facilitar a compreensão dos julgadores leigos em relação às questões que lhes são postas no exercício de seu múnus, sem, contudo, descurar da gravidade que recai sobre essa função soberana e do que exigem os ditames da justiça em termos de garantias para a condenação – para o exercício legítimo do poder de punir, portanto – e de proteção à liberdade e à presunção de inocência, valores regentes de nosso sistema penal e processual penal, como já destacado.
Justamente nessa moldura é que o art. 483 do CPP prevê quesitos cujas respostas, em atenção aos ditames da justiça, devem vincular-se à prova produzida, a provimentos jurisdicionais anteriores e aos debates realizados no que tange à materialidade do fato, à autoria ou participação, a eventual causa de desclassificação (CPP, art. 483, §4º), à existência de causa de diminuição de pena alegada pela defesa ou à de circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgam admissível a acusação.
Mas não é só. Em meio a esses quesitos que, observados os ditames da justiça, devem ser respondidos a partir da prova produzida, de decisões judiciais e dos debates realizados, se sobreleva um que reporta diretamente ao sistema constitucional de garantias que tem na proteção à liberdade sua chave hermenêutica, ao mesmo tempo em que se conecta à premissa democrática máxima insculpida no parágrafo único do art. 1º da CF, segundo a qual “todo o poder emana do povo”, que o exerce diretamente – como no caso do júri – ou por meio de representantes eleitos.
Referimo-nos, a toda evidência, ao quesito absolutório genérico e obrigatório (CPP, art. 483, III), em que o jurado é questionado, simplesmente, se o acusado deve ser absolvido e cuja resposta, diferentemente daquela exigida pelos demais quesitos, não está relacionada a aspectos que reportam à prova produzida, a decisões anteriores ou aos debates realizados – como se dá em relação à autoria ou participação, à materialidade, a eventual causa de desclassificação, à existência de causa de diminuição, de aumento ou de circunstância qualificadora. Ora, tratando-se de quesito genérico obrigatório apresentado a soberanos que não estão vinculados a respostas dadas a quesitos anteriores relativos à autoria e materialidade, conclui-se que a liberdade de resposta a ele é plena e a clemência, autorizada.
Noutras palavras, trata-se de quesito que se abre inteiramente à soberania do jurado – e do júri – ao mesmo tempo em que a conecta a um sistema de garantias penais e processuais penais que tem em seu vértice a proteção à liberdade diante do poder de punir, expressão de uma concepção de justiça que atravessa a história civilizada e se expressa em máximas a partir das quais se reafirma a necessidade de proteção ao estado de inocência como pressuposto de justiça. Nesse sentido aponta a conhecida frase de Voltaire, para o qual “é melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente”, apropriada e desdobrada ao longo da história e que, no marco civilizatório, nos permite sustentar que é melhor absolver dezenas, centenas, milhares de culpados a condenar um único inocente.
A liberdade indevidamente confiscada do cidadão não pode ser restituída, de modo que a mínima dúvida há de assegurá-la incólume, bem como o estado de inocência que lhe é pressuposto. Pelas mesmas razões de base, há de ser reconhecida a irrevogabilidade do veredicto soberano que, sem vinculação a provas, mas submetido à consciência do jurado e aos ditames da justiça, assegure liberdade e inocência ao cidadão julgado – e absolvido – pelo júri, de modo a se afastar o risco de injustiças materializadas em uma condenação indevida num segundo julgamento[iii].
Em síntese, é pela proteção à liberdade e à presunção de inocência – valores máximos de nosso sistema de garantias penais e processuais penais – que a soberania do veredicto absolutório proferido pelo júri diante da resposta afirmativa ao quesito genérico e obrigatório previsto no art. 483, III, do CPP se faz dotada de irrevogabilidade[iv][v], ao passo que o veredicto condenatório, vinculado à prova produzida, a decisões judiciais e aos debates realizados pelas partes está sujeito à revisão técnica que, por uma única vez, poderá determinar que se proceda a novo julgamento se constatada a manifesta desconexão entre a conclusão dos jurados e a prova produzida e debatida pelas partes (CPP, art. 593, III, “d”). E, frise-se, ssa possibilidade recursal de que se pode lançar mão uma única vez (CPP, art. 593, §3º) visa à proteção da liberdade e do estado de inocência diante de uma injustiça manifesta[vi], o que, contudo, não lhes traz a garantia em face de uma injustiça reiterada num segundo julgamento, em que, injusto ou não, prevalecerá o veredicto condenatório em razão da soberania do júri.
Se tanto respeito se assegura à soberania do júri mesmo diante de duplo juízo condenatório eivado de manifesta injustiça – considerando que os fatos e provas são os mesmos –, muito mais e maiores razões há, segundo todo o exposto, para que o juízo absolutório em razão da resposta afirmativa ao quesito genérico (CPP, art. 483, III) seja irrevogável, máxime porque não se pode alegar uma manifesta contrariedade em relação à prova produzida nos autos diante de uma decisão que a ela não está adstrita. Isso violaria imediatamente não só o que prevê o art. 483, III, do CPP, quando analisado em meio aos outros quesitos previstos, como a própria plenitude de defesa e a soberania dos veredictos (alíneas “a” e “c”, respetivamente, do art. 5º, XXXVIII, da CF), especialmente no contexto principiológico em que se inserem, regido pelo favor rei, favor libertatis.
Se ao povo, fundamento da democracia, é reconhecido o exercício livre e imotivado do poder de escolher quem o representará e liderará aplicando e elaborando leis, chefiando o Poder Executivo e exercendo o poder legislativo, nada justifica que suas decisões sofram quaisquer restrições ou sejam submetidas a poderes revisores não autorizados segundo uma interpretação sistêmica das normativas aplicáveis quando se voltam à escolha, entre seus pares, daqueles que entende devam ser inocentados por justiça quando confrontados com o poder punitivo estatal[vii].
[i] Brasília: Editora UnB, 1999.
[ii] O sigilo das votações do Tribunal do Júri revela-nos que ali atuam membros de um povo uno, que não votam em nome próprio, mas representando a comunidade que integram e representam no exercício direto de um máximo poder que legitima o Estado Democrático de Direito.
[iii] Aliás, essa dimensão de soberania do júri é inteiramente coerente – e aqui há uma ironia – com aquela usualmente referida nos juízos de pronúncia proferidos Brasil afora, nos quais, em nome da soberania – e em prejuízo da contenção técnica que seria exigível nesse momento processual –, são admitidos, para análise e julgamento pelo Tribunal do Júri, casos em que inexistem indícios seguros de autoria ou provas suficientes de materialidade que legitimem a exposição do acusado a tão nua soberania. E isso, via de regra, se dá a partir de um delírio coletivo tomado por princípio – inexistente – e que atende pelo nome de in dubio pro societate. Ora, se na prática, em nome da soberania do Tribunal do Júri, se admite para seu julgamento causas em que há reconhecida preponderância de uma dúvida resolvida em favor da sociedade – uma conclusão bizarra por si –, razões mais consistentes e definitivas, porque ancoradas em nosso sistema de garantias, concorrem para que os veredictos absolutórios a partir dessa soberania sejam reconhecidos como irrevogáveis, impassíveis de revisão.
[iv] Nesse sentido, Aury Lopes Júnior (Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015), bem como Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar, segundo os quais:
“Considerando o júri ser uma garantia constitucional do cidadão, entendemos que: (i) o jurado tem o direito de absolver por suas próprias razões (clemência, piedade, compaixão, entre outros), mesmo que elas não encontrem eco nas provas dos autos; (ii) a absolvição não seria uma decisão contrária à prova dos autos, por não espelhar a resposta a um quesito de fato, ao contrário, seria uma maneira de exercício do seu livre convencimento.” (Manual do Tribunal do Júri. São Paulo: Thomsn Reuters Brasil, 2020. p. 458). (destaques nossos).
[v] Em conformidade conclusiva com a tese defendida, as decisões proferidas pelo STF nos HCs 117.076, 185.068 e 178.777.
[vi] Objetivamente constatável pela dissociação entre as respostas dadas pelos jurados a quesitos que as vinculam aos elementos probatórios colhidos, a decisões anteriores e às teses apresentadas pelas partes.
[vii] Essa questão também foi tratada no artigo “Pronúncia e clemência: a soberania e o Tribunal do Júri em dois momentos”, tornado capítulo do livro “A faixa verde no júri 3: reflexões teóricas e práticas de defesa” (COSTA, Domingos Barroso da; RAPHAELLI, Rafael. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021. P. 139-154).
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